"203.
Nem se sabe se o que acaba do dia é connoscoque finda em mágoa inútil, ou se o que somos é falso entre penumbras, e não há mais que o grande silêncios sem patos bravos que cai sobre os lagos onde os juncos erguem a sua hirteza que desfalece. Não se sabe nada, nem a memória resta das histórias de infância, algas, nem a carícia tarda dos céus futuros, brisa em que a imprecisão se abre lentamente em estrelas. A lâmpada votiva oscila incerta no templo onde já ninguém anda, estagnam os tanques ao sol das quintas desertas, não se conhece o nome inscrito no tronco outrora, e os privilégios dos ignotos foram, como papel mal rasgado, pelas estradas cheias de um grande vento, aos acasos dos obstáculos que os pararam. Outros se debruçarão da mesma janela que os outros; dormem os que se esqueceram da má sombra, saudosos do sol que não tinham; e eu mesmo, que ouso sem gestos, acabarei sem remorsos, entre juncos ensopados, enlameado do rio próximo e do cansaço frouxo, sob grandes outonos de tarde, em confins impossíveis. E através de tudo, como um silvo de angústia nua, sentirei a minha alma por detrás do devaneio - um uivo fundo e puro, inútil no escuro do mundo"
"O livro do desassossego", Bernardo Soares, o escriturário que vivia em Pessoa
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